Monthly Archives: November 2006

Da morte

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Já sei que no fim me vou sentir deprimida e que virão à tona da memória momentos do passado pouco agradáveis, mas há textos que me levam a reflectir no que de mais certo nos espera quando respiramos pela primeira vez cá fora.

A morte bateu-me à porta quando tinha 13 anos. Até lá, as mortes dos meus avôs paterno e materno não foram conscientemente vividas. Não me lembro de ter sofrido, como supostamente todos nós devemos sofrer quando morre um familiar. A morte bateu-me à porta quando a mãe da minha melhor amiga, a São, faleceu, tinha esta também 13 anos. Não se vive a morte dos outros, mas sofre-se profundamente com os amigos, como foi o caso.

A morte voltou a bater-me à porta há três anos e meio, com o desaparecimento da minha própria mãe. Chorei, berrei, amaldiçoei um suposto Criador omnisciente e omnipresente e inantingível e invisível e cruel, senti um vazio como nunca antes tinha sentido. E nunca mais os natais foram os mesmos. Por muito que finja, o nó na garganta teima em não me deixar.

Desde essa altura que a morte tem, com demasiada frequência, invadido a minha mente: a minha própria morte, a dos que estão mais próximos de mim, a daqueles que mais amo. Tenho medo da morte, tenho medo de saber que vou morrer, tenho medo de mortes estúpidas como a da mãe da minha amiga, tenho medo de mortes lentas como a da minha mãe. Não gosto de ter consciência de que com a minha morte, não verei outros crescer e viver plenamente.

Tenho para mim que a morte física é o fim de tudo: coloca-se um corpo numa caixa de madeira que acaba debaixo da terra. Ou crema-se. E acabou. Não há mais nada. Haver há, mas só para quem fica: as lamúrias, as saudades, as boas recordações, as imagens que criámos da pessoa defunta.

Da minha mãe, também recordo um corpo decrépito que em nada correspondia à sua idade e à sua força gigantesca de viver, uma mente que, antes de atingir a fase terminal, funcionava a 200 à hora, uma pessoa frenética, lutadora, quase sempre incansável, com objectivos que raríssimas vezes não alcançou. A sua própria mãe conseguiu vencer uma batalha contra a morte, a minha mãe não conseguiu vencer a dela.

Se há algo para lá da morte, só o vou saber uma vez. Mas até lá, há que aproveitar bem e dizer muitas vezes a quem mais se estima as palavras que nunca disse à minha mãe!

6 anos num ápice

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Sábado à noite. A sua companhia habitual tinha-se ausentado. A solidão invadia o seu espaço, o físico e o interior. A televisão de pouco lhe valia, como já era habitual. Restava-lhe o computador, com acesso recente à Internet. A curiosidade de ver mais, ler mais, falar mais, querer saber mais, ter mais, conhecer mais, viajar mais, interagir mais – tudo isto nem sempre da melhor maneira – deu no que deu: horas perdidas que voaram sem que soubesse como, horas úteis que resultaram em alegrias e tristezas e ódios e monólogos e diálogos e fóruns e aquisições e paixões e trocas e audições e sessões e sei lá que mais.

Monólogo nocturno

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“Mas que grande besta!”

Uma grande besta me saiste tu, que não sabes quem tens! Porque é que tens que proferir tais palavras tão frequentemente? Depois não te admires que sejam repetidas! E para que te irritas com ele? Tu é que ouviste mal! A culpa é toda tua! E depois vingas-te nele! Como se soubesse o que acabou de dizer! E imediatamente arrependes-te, porque sabes que foste injusta! Sua besta! Claro que a seguir há troca de mimos e palavras doces, mas o mal está feito. Pensa duas vezes antes de abrir a boca, besta!

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Um dia, o Zezinho e o Ricardinho, algo saturados das mesmas companhias e das mesmas rotinas naquela aldeia remota dum qualquer país à beira do Atlântico,  decidiram pregar uma partida aos velhotes, velhotas, amigos, amigas e seus familiares.

Simplesmente desapareceram, apenas com um dia de diferença. Não foi nada que planeassem às escondidas, aconteceu. Sem dizerem nada um ao outro, foi cada um para o seu lado. 

De início, ninguém estranhou: já estavam acostumados aos súbitos desaparecimentos destes dois fedelhos e sabiam que eles voltariam a aparecer, habitualmente com novas aventuras para partilhar com os velhotes da tasca da aldeia. “Tudo invenções”, diziam estes, “…a estes falta-lhes um bom par de estaladas que é para ver se vão ao sítio”, diziam outros.

A verdade é que desta vez parecia ser diferente: nem sinal deles e já lá iam 6 dias. O suficiente para até os mais rezingões se começarem a preocupar com a ausência dos putos esquisitos que só queriam saber de papéis e historietas diabólicas. Teriam sido levados pelo vendaval da semana anterior? Teriam sido raptados por extra-terrestres? Teriam ido com o azeiteiro que passava na aldeia às 4ªs-feiras de manhã e que gostava de dar um doce às crianças que o rodeavam? Teriam resvalado pela falésia abaixo numa das suas passeatas sem destino? É que desta vez estavam todos às escuras, quanto a esta estranha “desaparição”, como lhe chamou o Padre Benjamim na última homília. Mistério…

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O Zezinho e o Ricardinho continuaram grandes amigos ao longo da sua adolescência. Apesar do gosto comum na leitura recíproca e na escrita, eles eram dois cachopos bastante diferentes. Senão vejamos:

O Zezinho era um moço extremamente bem educado e refinado. Era também muito erudito, não fosse ele um escritor amador e em todas as circunstâncias escolhia as palavras a usar. Ele era uma daquelas pessoas que tinha nascido com o dom da palavra e auguravam-lhe um bom futuro, talvez como advogado de cidade ou até político. Contudo, o Zezinho nunca virava as costas a uma luta de punhos e nem a uma de palavras, seja por que motivo fosse. Estava-lhe no sangue não resistir a uma provocação, especialmente quando achava que tinha razão – o que acontecia sempre. E quantas vezes não se meteu ele em sarilhos à conta desta sua característica de guerreador. Muitas vezes, saiu vitorioso das suas batalhas de palavras. Menos vezes saiu vitorioso quando se tratava simplesmente de uma guerra de punhos. Muito olho negro e pisaduras nas canelas teve que tratar a sua mãezinha! Mas ele orgulhava-se de quem era, e dizia que nunca mudaria, só às portas da morte!

Já o Ricardinho era um puto bastante mais recatado. E mais multifacetado também. Apesar da grande amizade que o unia ao Zezinho, o Ricardinho tinha uma vida paralela totalmente desconhecida do amigo. E só com alguma ginástica de horários nocturnos é que o Ricardinho conseguia esconder esta faceta do seu grande amigo, que de burro nada tinha, mas quanto a isto  andava mesmo a ver navios.  Era à noite, já a altas horas, que o Ricardinho se dedicava à escrita de contos góticos. A maior parte bastante aterradores para o comum dos leitores e talvez deprimentes.  Mas a ele dava-lhe um gozo tremendo ter poder sobre a Noite e sobre a Morte, sobre as figuras negras que escolhia para protagonistas dos seus enredos macabros.